Em 2019, a enfermeira Rosa Ester Fontenele Chaves Ribeiro, 44 anos, viveu o que
descreve como o período mais doloroso de sua vida: a perda da filha mais velha,
Júlia Fontenele Ribeiro, de apenas 9 anos, após um quadro de insuficiência
respiratória.
Portadora de encefalopatia, Júlia passou mais de dez dias internada na Unidade
de Terapia Intensiva (UTI) Pediátrica do Hospital Regional Norte (HRN), unidade
da Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) em Sobral. “Ela era a nossa primeira
filha, uma menina alegre, cheia de luz, que nos ensinava todos os dias sobre
força e amor”, recorda Rosa.
No momento em que o chão parecia desaparecer, Rosa e a família encontraram
forças na fé para transformar a dor em um gesto de solidariedade. Autorizaram a
doação dos órgãos de Júlia. O que poderia ser apenas luto tornou-se também um
legado de esperança. “Eu não queria que outras mães passassem pelo que a gente
estava passando. Se a Júlia podia salvar vidas, esse seria o legado dela”,
conta a enfermeira.
A decisão mudou não somente a vida de quem recebeu os órgãos, mas também a
trajetória da mãe. Meses após a doação, Rosa que é funcionária do HRN há 11
anos, foi convidada a integrar a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos
e Tecidos para Transplantes (Cihdott) do hospital. Hoje, ela atua no centro
cirúrgico e também acompanha de perto o processo de identificação de potenciais
doadores e entrevistas com famílias.
Reviver a própria história a cada conversa com parentes enlutados não é fácil,
mas Rosa encontrou um propósito maior. “A saudade nunca diminui, mas a doação
traz consolo. A gente sabe que outras famílias receberam um ‘sim’ que eu
gostaria de ter recebido para minha filha. Difícil é, mas o prazer de poder
ajudar é muito maior.”
No Setembro Verde, mês de conscientização sobre a doação de órgãos, o exemplo
de Rosa ganha ainda mais força. Sua história mostra que é possível transformar
a dor em vida e inspira famílias que, mesmo em meio ao luto, encontram coragem
para dizer “sim”.
O elo da esperança
No HRN, a Cihdott atua como o “coração organizador” do processo de doação.
O trabalho começa com a identificação precoce de potenciais doadores nas UTIs,
na emergência e em setores como a Clínica Médica e a Unidade de AVC. Quando há
suspeita de morte encefálica, a equipe acompanha rigorosamente o protocolo
exigido pelo Conselho Federal de Medicina, com exames clínicos, tomografia,
teste de apneia e eletroencefalograma.
Ao mesmo tempo em que a parte técnica avança, a comissão se dedica ao
acolhimento da família. A cada etapa, parentes são informados do andamento dos
exames para que não sejam pegos de surpresa. Psicólogos, assistentes sociais e
profissionais de saúde compõem a rede de apoio nesse processo delicado.
De acordo com o médico coordenador da comissão, Francisco Olon Leite Júnior, a
maior dificuldade é justamente equilibrar ciência e sensibilidade. “Quando a
família recebe a notícia da morte encefálica, muitas vezes ainda está em
negação. Nosso papel é unir empatia, paciência e clareza de informações para
transformar a dor em esperança.”
Olon explica que cada decisão respeita o tempo e os valores de cada família.
“Mostramos que a doação é uma forma de continuidade da vida, em que a pessoa
que parte deixa uma herança concreta de solidariedade. O trabalho da comissão é
criar um ambiente de confiança e respeito, no qual a decisão seja tomada de
forma consciente e humanizada.”
Esse trabalho tem se refletido em números. Nos últimos anos, o HRN tem
alcançado resultados expressivos na doação de órgãos. Um dos indicadores que
evidencia essa evolução é a taxa de efetivação de doadores, que apresentou uma
tendência positiva, passando de 18% em 2020 para 27% em 2025 (até o primeiro
semestre).
Além do acolhimento, a Cihdott cuida da logística, articulando-se diretamente
com a Central Estadual de Transplantes, equipes cirúrgicas e bancos de tecidos.
O processo exige agilidade, já que a viabilidade dos órgãos depende do tempo.
Para manter a qualidade do potencial doador, a equipe também capacita
constantemente profissionais multiprofissionais sobre a importância da
manutenção clínica do paciente.
Legado vivo
Ao retornar à UTI Pediátrica, onde acompanhou os últimos dias da filha, Rosa
confessa que a lembrança ainda dói, mas também inspira. Ela se reconhece em
cada mãe que encontra e oferece sua história como ponte de confiança. “A dor
vai virar saudade, mas também vira alegria quando você lembra que outras
famílias sorriram porque alguém disse ‘sim’.”
Neste Setembro Verde, histórias como a de Rosa e Júlia lembram que a vida pode
florescer mesmo em meio ao luto. A decisão de doar não elimina a saudade, mas
multiplica o amor. Júlia partiu cedo, mas continua presente em cada batimento
que ajudou a manter.
Setembro verde
Durante o mês de setembro, a Sesa divulga uma série de reportagens que
abordam a doação de órgãos, reforçando a importância do ato e, também, o
esforço conjunto entre profissionais da saúde e familiares para que vidas sejam
transformadas. A série tem alusão à campanha Setembro Verde, que aborda a
conscientização para a doação de órgãos e tecidos.
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